A  FALTA  DA  REFORMA  POLÍTICA

 

                   MIGUEL REALE

 

                   A história do Direito Constitucional no Brasil, a partir da Carta Magna de 1988, confunde-se com a da sua contínua revisão, elevando-se, até agora, a nada menos de 35 emendas constitucionais aprovadas, o que constitui um fato raro deveras alarmante. É o que acontece quando o mais abstrato iluminismo preside os trabalhos de uma Assembléia Constituinte, privada do senso da realidade, por crerem, ilusoriamente, os seus componentes,  que bastava discipliná-los na Constituição para incontinenti serem resolvidos os magnos problemas do País. Daí o absurdo número de seus artigos concebidos à margem da experiência, prevalecendo a demagogia e o fisiologismo, com o conflito dos mais desencontrados interesses individuais  e corporativos. Essa decisão de converter tudo em matéria constitucional redunda no que denomino “totalitarismo normativo”, sendo cerceado o poder de iniciativa de leis pelo legislador ordinário mais achegado às exigências concretas.

                   No que se refere ao “sistema de poder”, ou “forma de governo”, que é um dos elementos-chave do ordenamento político, houve ainda um elemento perturbador, que foi a pretensão do então presidente da República de ter mais um ano de mandato, o que colidia com o regime parlamentar que, até esse momento, contara com a preferência dos constituintes.

                   O resultado foi a aprovação de um conjunto de mandamentos que não configura nem parlamentarismo nem presidencialismo, nem tampouco uma composição original e inteligente de idéias tomadas de um e do outro.

                   Pode-se dizer que, em razão desse despautério, a vida política nacional tem-se desenvolvido com abstração das disposições constitucionais, graças a combinações ou arreglos partidários realizados pelo Chefe do Poder Executivo, conforme seu talento na arte tão nossa de “dar um jeitinho”. Nesse sentido, todos devemos reconhecer que um dos rasgos de estadista de Fernando Henrique Cardoso é representado pela sua extraordinária capacidade de governar com base nas mais variadas formas de articulação de interesses, fazendo prevalecer, via de regra, os imperativos do bem público.

                   A falta de uma lúcida “reforma política” talvez seja a crítica maior que lhe pode ser feita, não se devendo esquecer que ele se valeu da confusão gerada pela Carta de 1988 para ganhar mais um quatriênio de mandato, com a aprovação da emenda que permitiu sua reeleição, bem como a de governadores e prefeitos, o que parece ter constituído o preço político pago por esse empreendimento.

                   Agora, com a inesperada defecção do Partido da Frente Liberal, complicou-se a posição do presidente da República, que, apesar dos pesares, já logrou obter algo de positivo, que é a decisão do PFL de atuar, não como oposição, mas como “partido independente a serviço da nação”, eufemismo com o qual essa agremiação, tão acostumada às benesses do Poder, poderá continuar apoiando o governo, o que se coaduna com o dever de coerência, sem prejuízo do definitivo apoio dado à já problemática candidatura da governadora do Maranhão.

                   O fato é que não teriam ocorrido eventos dessa natureza se não tivesse havido o erro de postergar-se a reforma política, a qual já se acha em parte resolvida, se lembrarmos que houve um plebiscito que deu fácil ganho de causa aos partidários do presidencialismo.

                   Tudo depende, todavia, de saber que espécie de presidencialismo vai nos reger, pois, exceção feita especialmente dos Estados Unidos da América e da Inglaterra, o que prevalece, hoje em dia, são soluções mistas, pois o regime presidencialista se parlamentariza cada vez mais, e vice-versa.

                   No Brasil devemos optar por uma solução que corresponda ao nosso tipo especial de federação, na qual a União, os Estados e os Municípios vivem em uma situação de parceria, embora se reconhecendo a supremacia daquela em razão da unidade nacional.

                   Por outro lado, se o nosso é um Estado Democrático de Direito, não é compreensível que continue a viger a revoltante desigualdade existente na Câmara dos Deputados, na qual predominam as bancadas estaduais correspondentes às unidades federativas menos representativas dos pontos de vista demográfico, econômico e cultural. Na realidade, não haverá reforma política justa se não implicar as concomitantes revisões partidária e eleitoral. Talvez seja essa a razão pela qual, passados treze anos, nunca ela figurou no quadro das aspirações dos Poderes Legislativo e Executivo.

                   Com receio de afrontar os problemas todos que a revisão do sistema de poder implica, nossos políticos preferem ignorá-la, continuando-se a fazer de conta que a Constituição esteja sendo cumprida, quando, na realidade, a governabilidade da nação resulta apenas das composições conjunturais dos interesses e aspirações em jogo.

                   É também a falta de legislação política adequada que explica a recente decisão do Tribunal Superior Eleitoral, ao editar regras para a formação das coligações partidárias nos Estados e Municípios, exigindo seja obedecido o modelo federal porventura já existente.

                   Ante a ausência de normas legais reguladoras da matéria, não nego a competência daquela Corte para fazê-lo, atuando como fonte jurisdicional; mas, como bem o advertiu Miguel Reale Júnior, em artigo no jornal Valor Econômico, de 8 de março último, nesse caso, o preenchimento da lacuna existente na legislação tem o valor de uma norma geral, a qual não pode deixar de obedecer ao disposto no artigo 16 da Constituição, segundo o qual “a lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”.

 

 

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